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A mensageira

  • Foto do escritor: paralereamar
    paralereamar
  • 31 de out.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 3 de nov.

Um conto de Milena Pássaro


A mensageira

O trincar das chaves que o funcionário do velório municipal retirou do bolso chamou a atenção de Melissa, que conversava com alguns familiares e amigos. Homens da floricultura e da funerária aguardavam o rapaz abrir a porta para prepararem a sala antes que o corpo chegasse.

— Mas o que aconteceu? Tão novo!

— Enfartou dormindo. Acho que nem chegou a sentir dor. Quando cheguei, o corpo já estava gelado. Tentei colocar o braço dele para baixo, mas já estava rígido. Costumava dormir com a mão embaixo da cabeça, e assim ela ficou. O rosto demonstrava a tranquilidade de quem dormia. Não encontrei nenhum sinal de sofrimento.

— Deus me perdoe! Você o viu morto? Colocou a mão nele?

— Sim. Quando ficamos sabendo, Henrique e eu fomos até lá. Sabíamos que precisariam de toda ajuda possível.

O barulho do motor do rabecão agrupou as pessoas ali presentes. Os dois elegantes condutores, vestidos de terno preto, cumprimentaram respeitosamente o grupo e abriram a parte de trás do veículo.

O tamanho e o formato do caixão causaram estranhamento, mas ninguém ousou comentar. Todos sabiam o verdadeiro motivo para o uso daquela urna tão diferente. Apreensivas, as pessoas acompanharam a enorme caixa de madeira ser colocada sobre a base da sala onde o velório seria realizado.

Melissa, nas pontas dos pés, tentava visualizar o rosto do amigo. Com dificuldade, conseguiu ver que ele mantinha o semblante tranquilo e sereno. Para algumas pessoas mais baixas, restou a decepção de não poderem se despedir como gostariam.

A ternura dos olhos de Melissa revelava o que, em silêncio, ela pedia a Deus. A dor nos pés esticados a fez sentar ao lado do marido, que conversava com alguns conhecidos.

Todos comentavam sobre o motivo da morte. Entediada com o assunto, ela foi até a copa tomar um pouco de café.

— Melissa! Como você está, minha amiga?

— Olívia!

Alguns olhares discretos denunciaram o incômodo diante da alegria das duas em pleno velório. Desconcertada, Melissa se virou para pegar a garrafa de café.

Bem à sua frente, uma senhora maltrapilha, descabelada e com o rosto deformado surgiu do nada. Girando o pescoço de um lado para o outro e com os olhos arregalados, olhava fixamente para Melissa, que, disfarçando naturalidade, continuou a conversar com a amiga.

O coração parecia explodir dentro do peito. O cheiro de animal morto em decomposição foi diminuindo à medida que a assombrosa mulher se afastava. Mas, ao chegar à porta da copa, em milésimos de segundo, a estranha voltou e continuou a encarar Melissa.

Enquanto balbuciava sons indecifráveis, o insuportável hálito pútrido penetrou nas narinas de Melissa, embrulhando-lhe o estômago. Firme, com os olhos voltados para a amiga, ela ria das histórias que ouvia, ignorando a fedegosa mulher que se misturava entre as outras pessoas.

Quando se viu livre, Melissa puxou uma cadeira e sentou-se.

— O que foi? Está pálida.

— Não é nada. Acho que minha pressão caiu... Estou há muito tempo sem comer.

Olívia pegou algumas bolachas de água e sal no aparador e entregou à amiga, que comeu devagar, tentando normalizar os batimentos cardíacos.

Do bebedouro, uma criança correu até Melissa com um brinquedo nas mãos.— Oi, tia! Você viu minha mãe?

Com o coração voltando ao compasso normal, Melissa olhou ao redor e, discretamente, balançou a cabeça dizendo que não. O menino, brincando com um carrinho, atravessou a parede do banheiro feminino.

— Melhorou? Vamos, o padre chegou. Já estão preparando a oração de despedida.

As mãos geladas de Melissa procuraram as do marido para juntos rezarem com o padre. Desconfiado, ele perguntou ao pé do ouvido:— Está tudo bem?— Sim.

Os dedos de Melissa marcavam no rosário o terceiro mistério quando ela percebeu que a mãe e o pai do falecido estavam ao lado do caixão.

De longe, Dona Ofélia cumprimentou a moça que a observava. Melissa fechou os olhos e continuou a rezar a Ave-Maria. As pernas, antes firmes, começaram a fraquejar, e com o coração novamente acelerado, ela, sem perceber, apertou a mão de Henrique.

Dona Ofélia esperava pacientemente, com um sorriso nos olhos, todos terminarem a oração de despedida. Melissa cerrava cada vez mais os olhos para não encarar a mãe que rezava pelo filho morto.

— Não faça isso comigo... Não faça isso comigo... — repetia Melissa em pensamento.

Chegara a hora de fechar o caixão. Os irmãos, em desespero, despediam-se daquele que, por ser o mais novo, deveria ter sido o último a partir. A mãe, ao lado dos filhos, tentava consolá-los, sem sucesso.

Melissa presenciava tudo sentada no banco ao fundo da sala. Dona Ofélia, com delicadeza e ternura, olhou para a moça que não desviava o olhar e suplicou:

— Preciso de sua ajuda.

— Não posso, Dona Ofélia. Pelo amor de Deus, eu não posso fazer isso.

— Pode sim, minha filha — disse Dona Ofélia, já sentando-se ao seu lado.

— Eles não vão acreditar em mim. Vão dizer que estou louca, que inventei tudo.

— Tenha fé, minha querida. Tudo dará certo.

Melissa olhou para o esposo, que a observava atentamente.

— Vamos até o carro. Você tem papel e caneta?

— Agora?

— Sim. Tem que ser agora.

Trêmula e amparada por ele, Melissa entrou no carro. Em transe, pegou a caneta vermelha que o marido encontrou no porta-luvas e começou a escrever, em uma folha da agenda, a mensagem que deveria ser entregue à filha mais velha de Dona Ofélia:


“Meus queridos filhos, sinto muito por estarem tão tristes, mas ao mesmo tempo, estou muito feliz. Irei abraçar e beijar novamente um dos meus filhos. Estou ansiosa pelo reencontro. Continuem firmes, tenham coragem e muita fé. Um dia, estaremos todos juntos novamente.


Saudades,


Mamãe.”


ree

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2 comentários


Rosinei Teixeira
Rosinei Teixeira
31 de out.

Gostei muito, uma psicografia deve trazer um conforto para os familiares, o difícil é a médium saber se vão acreditar.

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paralereamar
paralereamar
04 de nov.
Respondendo a

Exatamente o que a personagem sentiu. Grande abraço e continue por aqui.

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