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Brincadeira de Criança

  • Foto do escritor: paralereamar
    paralereamar
  • 27 de out.
  • 4 min de leitura

Um conto de Milena Pássaro


Brincadeira de criança


— Corre, você não consegue me pegar!


Melissa corria sorridente pelo corredor lateral da casa. Os sapatinhos cor-de-rosa batiam no chão com leveza, e o cabelo preso em duas presilhas azuis denunciava o cuidado que a menina tinha com a própria aparência. O short-saia jeans e o collant bege-claro permaneciam impecáveis, mesmo em meio à correria.


— Venha, vamos empurrar o meu irmão!


Dudu sorria, balançando as perninhas. O carrinho de bebê vermelho era, na imaginação das três crianças, um enorme ônibus.


— Brum, brum... bi-bi!


Melissa parou de empurrar e correu até o grande portão de grade branca.


— Você não pode ir pra rua. Vem pra cá, mamãe vai ficar brava! — Dudu continuava a balançar os bracinhos e as perninhas, rindo.


Por detrás do pequeno vitrô da cozinha, dois olhos vermelhos e marejados observavam as crianças brincarem. Sobre a geladeira, um rádio de pilha transmitia o programa “Que saudade de você”, que contava histórias comoventes sobre pessoas que já partiram. O copo caiu das ensaboadas mãos de Neneu, que lavava a louça enquanto ouvia o locutor.


— Credo, Mel, que susto! Vai brincar lá fora! — disse, ao sentir a presença da criança atrás dela. Mas, quando se virou para pegar um saco de lixo, viu pela porta aberta que Melissa brincava com Dudu embaixo do abacateiro.


— Eu, hein! — exclamou, fazendo o sinal da santa cruz.


Melissa, ao lado do irmão, olhava para o alto da grande árvore.


— Como você subiu tão rápido aí? Desce, vai cair e se sujar todo!


Ao abaixar-se para arrumar as panelinhas sobre o fogãozinho de tijolos, Melissa notou os pés descalços e sujos de Zezé.


— Credo, Zezé! Pede pra sua mãe te colocar sapato. Olha a cor do seu pé!


— Não vai cozinhar a comida? Cadê o fogo? Eu coloquei galhos e folhas secas aí pra gente cozinhar. Fui lá na cozinha pegar os fósforos, mas não achei. Pede pra ela — disse o menino, apontando para Neneu.


Parada de frente para o garoto e segurando uma panelinha de brinquedo, Melissa respondeu com desdém:


— É de mentirinha, né? Seu bobo!


— Então não vou brincar, Mel. Que chatice! — resmungou Zezé, cruzando os braços e virando de costas.


Dudu, balançando as perninhas e os bracinhos, observava uma borboleta amarela pousada sobre as vincas-de-gato. O sol filtrava-se entre as folhas do abacateiro, deixando o quintal dourado.


— Neneu! — gritou a menina. — Posso pegar o fósforo?


— Já te disse que quem brinca com fogo faz xixi na cama — respondeu Neneu, aproximando-se das crianças.


— Viu? Ela não deixa a gente brincar com fogo. Que mania de fósforo que você tem! — disse Melissa, irritada.


— E já está na hora de tomar banho. Vou dar banho primeiro no Dudu, depois é a sua vez — avisou a moça, pegando o garotinho no colo.


— Pede pra ela! Fala pra ela te dar o fósforo!


— Não vou pedir nada. Se quiser, peça você!


Neneu balançou a cabeça, suspirou e subiu os dois degraus da pequena escada para entrar na cozinha.


— Já cansei de brincar aqui fora. Tá muito chato — reclamou Zezé.


— Tá bom, tá bom. Vamos assistir televisão então.


— Olha, Mel! O ferro tá ligado. Vem, vamos derrubar ele! — Zezé sentou sobre a pilha de roupas e tentava empurrar o ferro. — Vem, Mel!


— Sai daí, Zezé!


Melissa dançava no meio da sala, encantada com o programa de televisão, e nem olhou para o amigo.


— Olha aqui, Melissa! Seu irmão dormiu na banheira — disse Neneu, saindo do banheiro. — Que bagunça é essa na minha roupa?


— Eu disse pra ele não subir aí! — Zezé correu para o quintal, fugindo da bronca.


— Ai, ai, ai! Pare de conversa e vá tomar banho você também — advertiu Neneu.


— Ah, não! Eu gosto tanto desse programa! Espera acabar?


Olhando para a TV, a moça passou a ponta do dedo na língua e tocou o ferro quente para verificar a temperatura. O cheiro da água vaporizada se misturava ao perfume doce do amaciante. Mel continuava a dançar pela sala, cantando com a babá.


— Oh, Neneu! Psiu! Vem cá! — chamou Dona Cida, a vizinha, com um dos braços apoiado no muro, fazendo gestos.


— Fala, dona Cida. O que aconteceu?


— Você ficou sabendo que o marido da fulana aí da frente foi embora com outra?


— O marido da entojada?


— Ele mesmo.


— Espera aí, dona Cida. Vou buscar meu cigarro, e a senhora me conta tudo. Dona Rosa vai amar saber. Daqui a pouco ela chega do trabalho.


Neneu correu até a varanda, acendeu o cigarro e lançou um olhar rápido para o quintal, ao ouvir um barulho. Era Zezé tentando acertar uma lata de óleo com uma pedra. Ao ver o cigarro aceso, correu chamar Melissa.


Enquanto isso, o cheiro de café fresco subiu pelo muro.


— Tó! Peguei pra você. Acabei de fazer — disse dona Cida, entregando-lhe uma xícara.


Entre uma fofoca e outra, café e gargalhadas se misturavam com a fumaça do cigarro.


— Oh, Neneu! Abre o portão aqui pra mim. Você está com a chave do cadeado? — gritou dona Rosa, chegando do trabalho.


— Oi, dona Rosa. Tô não. Tá lá em cima da geladeira.


— Pode deixar, eu pego aqui na bolsa.


— Entra logo! Dona Cida tem uma fofoca quentinha pra você!


— Vou colocar a bolsa lá dentro e já volto. Neneu... que cheiro de queimado é esse?


— Misericórdia! O isqueiro! Corre, dona Rosa, corre!


No quarto, Melissa estava paralisada diante do fogo que já tomava metade do berço. O ar cheirava a fumaça e plástico derretido. O isqueiro brilhava em sua mão trêmula.


— O que você fez, minha filha?! — gritou dona Rosa, tirando Dudu do berço em chamas.


— Foi ele, mamãe. Foi o Zezé...


— Tem que dar um jeito nessa menina, dona Rosa. Ela conversa sozinha o dia inteiro! — exclamou Neneu, apavorada.


Zezé, olhando para Dudu dormindo no colo da mãe, atravessou lentamente a parede do quarto e do quintal, sua voz ecoou como um sussurro entre o estalo das chamas:


— Ele não é seu irmão... ele é meu irmão. E ele tem que voltar pra brincar comigo.



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12 comentários


paralereamar
paralereamar
04 de nov.

Oi Ilma, sua presença aqui é muito importante para meu trabalho. Espero sua opinião nos próximos contos. Grande abraço.

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ricardo_farias
03 de nov.

Crianças veem o mundo espiritual de forma diferente dos adultos, creio que até uns 8 anos, e seria muito melhor se os adultos tivessem um mínimo de entendimento sobre isso. Eu fico perplexo com a falta de boa vontade em sequer dar atenção à criança, simplesmente dizendo que ela "fala sozinha"... Espíritos se mostram a elas justamente pela ingenuidade inerente à idade e infelizmente às vezes as coisas não acabam bem.

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paralereamar
paralereamar
04 de nov.
Respondendo a

Continue por aqui, seu comentário é de grande valor. Grande abraço.

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Sabrina Duran
Sabrina Duran
01 de nov.

Gostei muito do conto. É comum crianças verem o mundo espiritual e interagir com os espíritos, muitas pessoas não acreditam, mas é real.

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paralereamar
paralereamar
04 de nov.
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Oi Sabrina, feliz em ter você aqui contribuindo com o livro. Gde abraço. Te espero nos outros contos.

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Rosinei Teixeira
Rosinei Teixeira
31 de out.

Gostei muito, me fez pensar como deve ser difícil para uma criança médium.

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paralereamar
paralereamar
04 de nov.
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Muitas vezes elas têm que entender tudo sozinhas! Obrigada pela contribuição. Te espero nos outros contos.

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Adriana Carvalho
Adriana Carvalho
31 de out.

Adorei!!

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paralereamar
paralereamar
04 de nov.
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Obrigada Adriana! Feliz em te receber aqui. Espero seu recadinho nos outros contos.

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