top of page
Buscar

O carro verde

  • Foto do escritor: paralereamar
    paralereamar
  • 28 de out.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 4 de nov.

Um conto de Milena Pássaro


O carro Verde


Sobre a mesa de café, um pão francês com manteiga e um copo de leite com achocolatado aguardavam a menina sair do banheiro. Diante do espelho, Melissa encarava, com raiva, as espinhas que teimavam em florescer no rosto. Suspendeu um suspiro, colocou dois absorventes na mochila e foi para a cozinha.


— Bom dia, minha filha.


Com o capuz do moletom preto escondendo parte do rosto, Melissa tentou se proteger da claridade que invadia a casa. O barulho da máquina de lavar e o som das panelas que a mãe mexia sobre o fogão faziam o dia parecer ainda mais barulhento. Lá fora, Meg arrastava um pote vazio de sorvete pelo quintal, e Punk, tranquila, se espreguiçava sob o sol que começava a aquecer o tapete da porta.


— MEG! — gritou Melissa.


Assustada, Punk levantou a cabeça, em alerta. A mãe desligou a máquina e, com calma, retirou o pote da boca da cachorra.


— Calma, minha filha, ainda nem são sete da manhã. Seu pai deixou o dinheiro do lanche sobre o armário.


Ao abrir a grande porta antiga da casa, Melissa fechou o trinco e, ao virar-se para o portão, sentiu um calafrio.Um déjà-vu.


Recordou-se de ter passado a noite ali, observando o mesmo portão, imóvel. Do lado de fora, estacionado na contramão, um carro verde brilhava à luz pálida da manhã. O medo e a curiosidade se misturaram dentro dela.


— Vamos?


Melissa balançou a cabeça, voltando de uma longa viagem de pensamentos, e foi ao encontro da amiga, companheira de todas as manhãs.


— Não entendi nada da matéria da prova. Me ajuda, por favor!

— Ah, sem essa. Tenho certeza de que você nem estudou.

— Estudei sim, mas não entendi nada! Me ajuda? — pediu a outra, unindo as mãos num gesto de súplica.

— Tá, tá... — respondeu Melissa, andando rente ao muro. Os olhos desconfiados varriam a sarjeta. A amiga, feliz por ter conseguido o “sim”, começou a narrar a primeira fofoca do dia ainda a caminho da escola.


O grande sofá bege, as paredes azuis e a cortina verde faziam da casa da avó um refúgio. Depois de uma manhã inteira com adolescentes barulhentos, aquele lugar era o descanso perfeito.


No braço do sofá, uma mancha branca denunciava as sonecas diárias da menina.


Melissa tentava acordar, mas o sono pesado a prendia. O corpo suava frio. Um mal-estar subiu-lhe o estômago, e o que via no sonho acelerou seu coração.


Na vitrola, o disco de Leandro e Leonardo repetia a mesma palavra, insistente.


— Ah, não. Que droga! Meu disco furou — resmungou uma das tias, erguendo o vinil contra a luz, à procura do defeito.

— Calma — disse a outra, vindo da cozinha. — Deve ser pelo na agulha. Eu limpo.

— Credo, Melissa! Que cara é essa? Você tava dormindo tão tranquila... Acordamos você, né, fia?


Melissa continuava muda, olhos fixos no chão. Gal e Laura sentaram-se ao lado dela.


— Não é culpa de vocês... — murmurou. — Faz dias que tenho um sonho horrível. Já tô com medo de dormir.

— Espere aí — disse Laura, desaparecendo num dos quartos. Voltou com um terço e uma pequena imagem. — Segura a Nossa Senhora e o rosário da vó. Vamos rezar um Pai-Nosso e uma Ave-Maria. Esse sonho ruim vai embora, você vai ver.


De mãos dadas e olhos fechados, as três rezaram. Ao fundo, a música Pensa em mim tocava, suave, na vitrola.


— Pronto, fia. Agora nenhuma coisa ruim te pega — disse Gal, aliviada, voltando a cantarolar.


Pouco depois, ela e Laura se despediram apressadas, as bolsas no ombro e o eco das bicicletas sumindo rua afora.


— Uai, Mel! Por que cê tá com o meu rosário e com a minha santa? — perguntou a avó.

— Oh, vó, desculpa. A tia Laura pegou pra gente rezar antes de ir pro trabalho.

— Vamo lá guardá, então. E já que tamo aqui, vamo aproveitá e dá uma oiada nessas foto dessa caixa. Faz tempo que quero organizá elas. É bão que ocê me ajuda.


No quarto, dona Maria espalhou as fotografias sobre a cama. Tinha foto de todo mundo: tios, primos, conhecidos que Melissa nunca vira. A avó, paciente, explicava quem era cada um. Entre risadas e lembranças, o tempo se perdeu.


— Pronto, Melissa! Arrumamo tudo. Óia só, tudo nos álbum, bunitim.

— Vó, ficou uma aqui... Uma três por quatro.


As mãos de Melissa começaram a tremer. Ficou pálida ao virar a foto.


— Que foi, fia? Cê tá tremeno por quê?

— É ele!

— Ele quem, menina? — perguntou dona Maria, pegando a fotografia.

— Ele, vó! Faz quatro dias que sonho com esse homem. Ele fica parado na frente de casa, dentro de um carro... Ele sorri pra mim.


Dona Maria ficou em silêncio. O olhar, distante.

— É um carro verde, fia?

— É, vó. Um carro grande e verde. Como a senhora sabe?


A velha respirou fundo, emocionada.

— É seu bisavô, meu pai. Se ele aparecer de novo, não fica com medo, não. Vai até ele. Ele deve tá querendo falá com nóis.


A avó segurava a foto com carinho. Melissa, ainda trêmula, fez o sinal da cruz três vezes.

— Misericórdia, vó! — gritou, com a voz embargada, enquanto um vento gelado atravessava o cômodo e a imagem do homem se formava ao lado de dona Maria.



ree

Apoie nossos autores curtindo e comentando nesse post.

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
O mês de agosto

Um conto de Milena Pássaro O mês era agosto — não era pelo fato de ser considerado o mês mais longo do ano, com seus intermináveis trinta e um dias. Tantos outros agostos haviam sido suportados por Me

 
 
 

Comentários


Faça parte da nossa lista de emails

© 2023 por Amante de Livros. Orgulhosamente criado com Wix.com

  • White Facebook Icon
  • White Twitter Icon
  • Branco Ícone Google+
bottom of page